The Marriage Feast at Caná, de Bartolé Esteban Murillo, 1672
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“Homem e mulher os criou”: a beleza do Sacramento do Matrimônio

“Não lestes que desde o princípio o Criador os fez homem e mulher? E que disse: Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne? De modo que já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar” (Mt 19, 4-6).

Essas palavras de Jesus se situam num contexto de controvérsia com alguns judeus, que queriam conhecer a opinião do Rabi sobre o divórcio. Embora a intenção dos fariseus não fosse reta (como aliás não é a de muitos que contestam a visão católica dessa instituição), Jesus Cristo se aproveitou desse diálogo para reconduzir seus seguidores ao desígnio de Deus. Ao princípio. Qual o plano de Deus? Homem e mulher os criou, à sua imagem, para a comunhão. Separados, sentem a sua solidão. Sentem a incompletude. Buscam a relação, buscam seu par, aquele que Deus destinou para eles, “carne da minha carne e ossos dos meus ossos” (cf. Gn 2, 23). 

Tão grande é esse chamado à comunhão matrimonial que ressoa no coração do homem, tão forte e tão profundo, que é impossível contar quantas canções falam dele. Quantas histórias, trágicas ou felizes, têm por pano de fundo e mote principal esse clamor que está no coração de todos. O clamor da comunhão, o chamado ao matrimônio, o chamado a uma unidade indissolúvel, na qual o próprio Deus se implica (o que Deus uniu…).

Que o diga a pobre Sara, filha de Raguel, cuja história nos é narrada no livro de Tobias (cf. Tb 3, 7-17). Tendo o demônio Asmodeu se “apaixonado” por ela, matou todos os seus sete maridos, antes que consumassem a noite de núpcias. Impossibilitada, portanto, de realizar a união matrimonial, sente-se a tal ponto privada de sua humanidade que prefere a morte. Só a sua fé, sua esperança no Deus dos vivos, que recebeu de seu pai, lhe sustém diante de tal provação. E sabe clamar ao Senhor, Deus de Israel, e é atendida em suas preces: Deus envia à Terra o anjo Rafael, para sanar sua situação e dar-lhe por marido Tobias, aquele que Ele mesmo havia destinado para ela.  

Nessa história bíblica, ressoa a intenção de Deus ao criar Eva: vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda (cf. Gn 2, 18). Diante da grandeza de toda a Criação, tendo nomeado muitos animais e contemplado os céus e as estrelas, a lua e o sol em seu esplendor, e habitando no mais fértil jardim que existiu na face da terra, Adão não experimentou o estupor que experimentou ao conhecer sua mulher: “essa sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne!” (Gn 2, 23).

Estamos, portanto, diante de um desígnio original de Deus, diante da sua vontade primordial, que permanece marcada no coração de cada homem, ainda que o pecado tantas vezes a tenha ferido e deturpado, como atestam os interlocutores de Jesus, no diálogo já referido: por que Moisés permitiu escrever a carta de divórcio? (cf. Mt 19, 7).

O matrimônio foi ferido em sua beleza. Ferido por abusos, opressões, ciúmes, ódios, separações, poligamias, adultérios, traições, toda sorte de males. Ainda se percebe que é muito mais do que aparenta, mas somos muito inclinados a reduzi-lo a gostos, a sexo, a preferências, a instintos animais, esquecendo o toque divino que há nesse impulso natural.

Por isso Moisés permitiu a carta de divórcio: por causa da dureza dos nossos corações. Mas não era assim no princípio! (cf. Mt 19, 8). Por isso aparece Jesus Cristo. Ele vem não somente anunciar o desígnio original da Deus, mas restaurá-lo. 

Seu primeiro milagre se deu justamente no contexto de umas bodas, de uma núpcia em Caná da Galileia. Estavam ali ele, seus discípulos e sua mãe, quando veio a faltar o vinho. O vinho, na Escritura, é sinal da alegria, da festa. O casamento havia perdido sua alegria. É um sinal da ferida que o pecado deixou nessa instituição. Nesse contexto, Jesus Cristo, a pedido da sua mãe, realiza um milagre: tendo os servos enchido seis talhas de água, ele transforma aquela água em vinho, um vinho bom (cf. Jo 2, 1-12).

Muito além de um milagre físico, para resolver um problema prático, esse acontecimento foi um sinal, o primeiro dos sinais. Era sinal de uma realidade nova que Jesus Cristo viera instaurar. O matrimônio é uma instituição original da humanidade, querida por Deus e inscrita no coração de cada homem. Jesus Cristo, sanando as feridas que nele haviam se incrustado, não somente o restaurou na sua beleza original, mas o elevou a uma nova estatura: a partir de Jesus Cristo, o matrimônio passa a ser um sacramento, isso é, um sinal eficaz, que realiza a graça que significa, no qual atua o próprio Cristo.

Se já no início estava a imagem do amor de Deus no matrimônio, agora, essa realidade, entre os cristãos, carrega em si um grande mistério: é sinal da união realizada entre Cristo e a Igreja. Por isso o convite de São Paulo aos maridos de Efésios: que amem suas mulheres como Cristo amou sua Igreja (cf. Ef 5, 21-32). De fato, nesse trecho, o Batismo é apresentado como um banho de núpcias, fazendo perceber que a relação que tem o Senhor conosco, com os batizados, é uma relação de tipo esponsal, um amor de unidade e entrega. E é o matrimônio que se apresenta, nesse mundo, como um sinal dessa unidade.

Também por isso ele é indissolúvel: como poderíamos cogitar que o amor de Cristo por sua Igreja acabasse, se rompesse? Que seria de nós se Jesus Cristo apresentasse uma “carta de divórcio”? Confiantes que seu amor é eterno (cf. Sl 136 (135); Is 54, 8), os cristãos que se casam podem prometer um ao outro a mesma fidelidade e unidade. Não deixaram de estar feridos pelo pecado, não deixaram de ser débeis e sujeitos a serem perdoados setenta vezes sete vezes, mas sabem que, naquele momento em que prometem um ao outro fidelidade e amor, o fazem apoiados na graça que esse sacramento confere, a graça incomensurável de ser sinal do amor de Deus.

Sendo sinal desse amor, os esposos cristãos também realizam na sua vocação o mistério da superabundância da graça de Deus, ao se disporem a acolher todos os filhos que Deus enviar e educá-los na fé. Entendem que seu amor, para se fortalecer, deve transbordar na abertura a uma nova vida, fruto desse amor. Devem abrir-se ao projeto de Deus, que no princípio abençoou homem e mulher para que fossem fecundos e se multiplicassem (cf. Gn 1,28), fazendo-os assim partícipes da Criação. 

Unidade, fidelidade, fecundidade. Temos, assim, a imagem do que significa um matrimônio cristão: o amor com que Cristo amou sua Igreja e por ela se entregou (cf. Ef 5, 25).


Diác. Lucas Carvalho

Bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma
Contato: [email protected]

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